Na manhã de 2 de outubro de 2022, dentro das grades do Presídio Urso Branco em Porto Velho, uma cena rara se desenrolou: 1.473 homens em custódia provisória, sem condenação final, entraram em fila para votar. Não era um protesto. Não era um espetáculo. Era a democracia funcionando — mesmo atrás das grades. A urna eletrônica, montada num corredor da unidade, recebeu votos de quem, por lei, ainda não havia perdido o direito de escolher seus representantes. E isso, muitos não acreditavam que fosse possível.
Um direito que a Constituição não tira
A Constituição Federal de 1988 é clara: só perde o direito de votar quem foi condenado definitivamente por crime. Presos provisórios — aqueles ainda aguardando julgamento — mantêm todos os direitos políticos. É uma diferença sutil, mas crucial. Enquanto um homem condenado por roubo, com sentença transitada em julgado, fica impedido de votar, seu companheiro de cela, que ainda não teve o caso julgado, pode escolher o próximo governador. Essa lógica não é apenas legal. É humana. Significa que, mesmo privado da liberdade, o cidadão ainda é parte da sociedade. O Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia (TRE-RO) confirmou em 29 de setembro de 2022 que, entre os 2.100 internos do Urso Branco, 1.473 atendiam aos critérios: eram maiores de 16 anos, tinham título eleitoral regular e, acima de tudo, não tinham sentença definitiva.A logística por trás do voto nas prisões
Nem toda prisão no estado teve urna. A penitenciária feminina e o Centro de Ressocialização de Porto Velho não receberam seção eleitoral — o TRE-RO explicou que a exigência mínima de 20 eleitores aptos não foi atingida. Mas no Urso Branco, a demanda era enorme. A 20ª Zona Eleitoral do TRE-RO mobilizou servidores, policiais penais e técnicos eleitorais para montar a seção dentro da unidade. A votação ocorreu das 7h às 16h, no mesmo horário do resto do país, conforme determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um único aparelho eletrônico, protegido por sigilo e fiscalizado por duas mesas receptoras, recebeu os votos. Nada de papel. Nada de contagem manual. Tudo digital, tudo rastreável.É um processo que exige cooperação entre poderes. A Secretaria de Justiça de Rondônia forneceu segurança e acesso; o TRE-RO, a infraestrutura eleitoral. É o mesmo modelo que funcionou no Espírito Santo em 2024, onde 655 presos provisórios votaram em 12 unidades. Lá, o convênio entre a Sejus e o TRE-ES garante não só a urna, mas a logística completa: transporte de mesários, impressão de atas, treinamento de agentes. Aqui, em Rondônia, foi feito com menos recursos — mas com o mesmo princípio: o voto não é privilégio. É direito.
Por que isso importa?
Muitos pensam que presos não têm voz. Mas eles têm. E quando votam, não estão pedindo favores. Estão exercendo um direito que a sociedade, por meio da Constituição, decidiu lhes manter. Isso não é generosidade. É justiça. Afinal, o sistema jurídico brasileiro presume inocência até a condenação final. Negar o voto a alguém que ainda não foi julgado é como negar o direito à defesa. É uma contradição.Além disso, o voto prisional tem efeitos reais. Em eleições apertadas, como a de 2022, o voto de 1.473 pessoas pode mudar o resultado em municípios pequenos. Em Porto Velho, onde a diferença entre os dois candidatos a governador foi de menos de 10 mil votos, cada voto conta. E esses 1.473 estavam lá. Não para fazer barulho. Para escolher.
O que mudou desde então?
Em abril de 2024, o TRE-RO publicou uma reportagem detalhando a continuidade do serviço. O presídio Urso Branco ainda é o principal ponto de votação prisional da capital. A equipe da 20ª Zona Eleitoral mantém contato com a administração prisional para atualizar cadastros. O que antes parecia um caso isolado virou protocolo. O mesmo não se pode dizer de outros estados. Em alguns, a logística é tão complicada que nem 10 presos votam. Em Rondônia, o sistema funciona — e é um exemplo.
Quem pode votar na prisão?
Não é qualquer detento. A regra é simples, mas raramente compreendida:- Presos provisórios — sem condenação transitada em julgado
- Cidadãos entre 16 e 70 anos com título eleitoral regular
- Jovens que completaram 16 anos até 2 de outubro de 2022
- Adolescentes em medida socioeducativa
Quem foi condenado — mesmo que em primeiro grau — já perde o direito. A decisão só é reversível com anistia, graça ou revogação da sentença. Por isso, o TRE-RO faz cruzamento constante com o Judiciário para manter a lista atualizada. Um erro pode invalidar o processo. Por isso, a equipe da 20ª Zona Eleitoral visita a unidade mensalmente para revisar cadastros.
As críticas e os desafios
Há quem diga que votar na prisão é um privilégio. Outros alegam que o ambiente é inadequado. Mas a Justiça Eleitoral responde: o voto não é um prêmio. É um direito. E se a sociedade não garante acesso igualitário à educação, à saúde, ao emprego, não pode negar o voto por causa da prisão. O problema real não é o voto. É o sistema prisional. O Urso Branco, como tantas outras unidades, é superlotado, mal iluminado, com pouca água. Mas mesmo assim, naquele dia, a urna foi instalada. E funcionou.Em 2024, o TRE-ES relatou que, em todo o estado, 7.296 internos estavam em custódia provisória — e apenas 655 votaram. Por quê? Falta de informação. Falta de cadastro. Falta de vontade política. Em Rondônia, o esforço foi maior. E o resultado foi visível.
Frequently Asked Questions
Por que presos provisórios podem votar, mas condenados não?
A Constituição brasileira presume a inocência até a condenação final. Presos provisórios ainda não foram julgados e, portanto, mantêm todos os direitos civis e políticos. Já quem tem sentença transitada em julgado — ou seja, sem possibilidade de recurso — perde o direito de votar por decisão da Justiça Eleitoral, conforme o Código Eleitoral (Lei 4.737/1965). É uma distinção legal, não moral.
O voto dos presos é obrigatório?
Não. Para presos provisórios, o voto é facultativo, assim como para analfabetos, maiores de 70 anos e jovens de 16 a 17 anos. Obrigatório apenas para cidadãos alfabetizados entre 18 e 70 anos. Mesmo assim, em 2022, quase todos os 1.473 eleitores do Urso Branco compareceram — o que mostra que, quando o acesso é garantido, a participação é alta.
Como é garantido o sigilo do voto na prisão?
A urna eletrônica é instalada em ambiente isolado, com fiscalização de mesários e representantes da Justiça. Não há câmeras nem monitores dentro da cabine. Os presos votam um a um, sob supervisão de agentes da segurança, mas sem interferência. As atas são assinadas por membros do TRE-RO e pela administração prisional. O sistema eleitoral é projetado para evitar qualquer tipo de pressão ou manipulação.
Por que não houve votação na penitenciária feminina?
O TRE-RO exige no mínimo 20 eleitores aptos para instalar uma seção eleitoral. Na penitenciária feminina de Porto Velho, apenas 12 mulheres estavam em regime provisório e com título regular em 2022 — abaixo do limite. O mesmo ocorreu no Centro de Ressocialização. Isso não significa que elas não têm direito, mas que, naquele momento, não havia número suficiente para viabilizar a logística da votação.
O que foi feito para garantir a votação em 2024?
Em 2024, o TRE-RO intensificou a campanha de cadastramento e atualização de títulos dentro das unidades prisionais. A 20ª Zona Eleitoral fez visitas mensais ao Urso Branco, trabalhou com assistentes sociais da penitenciária e criou um canal direto com a Secretaria de Justiça. O resultado: em 2024, o número de eleitores aptos aumentou para 1.512, com maior participação e menos pendências.
Esse modelo pode ser replicado em outros estados?
Sim — e já está sendo. O Espírito Santo, por exemplo, tem um convênio formal entre Sejus e TRE-ES. O que falta em muitos estados é coordenação e recursos. Rondônia mostrou que, mesmo com poucos servidores, é possível. A chave é a parceria entre Justiça Eleitoral e administração prisional. Não precisa de tecnologia avançada, só de vontade política e respeito à lei.